Cru


Enquanto o chiado da panela de pressão não lhe chegasse aos ouvidos, ela não haveria de retorcer o estômago. Em qualquer parte da casa, seria o ruído do ar descompreendendo-se da tortura metálica que a faria perder a fome. O aviso da água em ebulição, obscurecendo qualquer sinal de razão, viria como o apito do trem por entre aquela noite ascorosa. Nesse ínterim silencioso, qualquer vibração de intensidade e amplitude perceptível não soaria como som.

Ao escolher o feijão na noite anterior, não reduziu a quantidade, não pensou nisso. Separou o mesmo tanto costumeiro, pondo-o de remolho para a cocção na manhã seguinte. Remoer-se-ia ao ouvir a maldita panela ricochetando o vapor pelo ar quase estático da cozinha. Porém, não, não iria trancar-se no banheiro de uma casa alheia, escorregando para o chão com as mãos encadeadas às pernas, numa convulsão das glândulas lacrimais, como fizera semanas a fio.
 
As marcas na parede, pela casa, dos inúmeros objetos jogados, não recordavam qualquer desvario. As louças, restantes na cozinha, eram alheias a qualquer caco que tenha esparramado-se pelo azulejo. E, na sala, o único porta-retrato trincado da família fingiu-se de desentendido ao ser na prateleira recolocado.

Acariciando o minúsculo par de sapatilhas vermelhas, no sofá, calçou-as em dois dedos das úmidas mãos cada uma. Ensaiou passos lentos e tortos sobre a perna esquerda, começou no limiar da virilha, percorrendo toda a extensão da coxa, chegou ao joelho. Sorriu, descalçou dos dedos magros os sapatinhos de lã. Apoiou-os na palma da mão direita, levou-os ao rosto. Sorveu, de olhos fechados, o cheiro do talco de odor obliterado.

Naquela manhã, mais cedo, preencheu com água a metade da panela. Derramou na pia o líquido do remolho que restara na bacia. Antes, porém, retirou os grãos sobrejacentes. Ligou o fogão como quem não acredita no que faz. Colocou a panela sobre a boca acessa, virou o feijão inchado no recipiente em aquecimento. Após um vã intento de jogar a tampa na parede, fixou devidamente na panela. Largou a pequena bacia, que abrigara os feijões, sobre o balcão, não restava cólera para arremessá-la. Restava as mãos molhadas relando, sem se secarem, no avental encardido. Restava a culpa de voltar para tudo que partiu.

Ao retirar os sapatinhos defronte ao rosto, levantou-se do sofá, estava descalça. Antes de caminhar vagarosamente pela casa, não sentiu os pés deixaram a quentura do tapete do centro da sala para o chão gelado da mesma. Ao cruzar a abertura que levava ao pequenino corredor, não experimentou, na travessia para o ar mofado, o corpo resvalar pelo tecido florido que se fantasiava de cortina no vão escasso. A escuridão, mais do que qualquer outra coisa, era a única distinguível naquela área da casa.

Como a inconfundível campainha, que trouxera aquelas desgraças, a balburdia da panela traria a náusea. O sereno que caia, quando noite, anunciava o trem que passaria para além da estrada. Mais distante, pelos trilhos que se enxergavam da janela, aquela máquina soaria sua buzina. E ante aquela noite, que nunca passava, a espera, sem saber, prolongaria-se. A sineta tocou, não eram eles. Os vagões que, minutos antes passaram, trouxeram apenas as notícias dos dois.

O quarto de casal, ainda fechado, foi deixado para trás, como um vagão na direção contrária. O corredor já era visível ao costume dos olhos. Havia quinze dias, não dormia em casa. Erguido no encosto do chalé e posterior a ele, mais ao fundo do corredor, o quartinho menor estava com a porta entreaberta. Parou, frente a luz alaranjada pela cortina que, subitamente, fez a mulher sorrir. Empurrou sem força a porta frágil, esta emperrou-se no chão quase sem se mover. Com os braços cruzados sobre o peito, transversalmente um ao outro, de lado, entrou na peça. Duas prateleiras guardavam poucas bonecas escabeladas e alguns brinquedos quebrados. Por entre as almofadas no canto úmido, bichinhos de pelúcia rasgados ocultavam a fresta no rodapé, que assoviava um ar gélido. Um berço lilás desbotado jazia no centro do quarto. A tinta parecia não mais desejar o próprio colorido. Na parede nenhum retrato fora depredado, pois não existira algum.

E foi lá, dentro do quarto menor, que o aviso chegou da cozinha. Tentou ignorar o nó na garganta, começou a salivar, não seria possível. Cuspia ou desfazia-o. Ouviu, realmente. A panela de pressão estava chiando e o trem estava na direção. A vertigem a fez segurar na borda do berço lilás. Queria mesmo era agarrar-se aos trilhos do trem, mesmo que os vagões decepassem seus dedos inúteis. Olhou para o interior da pequena cama, lá estava o último e o primeiro brinquedo que haviam comprado. Uma boneca, uma boneca intacta. Presente do pai, escolha da mãe. Ela, no cercado do berço, titubeou. As costelas comprimiram-se sobre a madeira. Pestanejou, segurando o rosto para não desfigurá-lo à própria exaustão dos traços, retirou o avental, colocou-o no espaldar de uma cadeira próxima sem estofado, cruzou o cercadinho.

Primeiro uma perna, depois a outra. O frágil colchão afundou-se no centro, erguendo-se levemente pelas beiradas. Ajoelhada no interior do berço, agarrou com as duas mãos a boneca vestida com roupinhas de pano. Trouxe-a ao peito, acariciou os cabelos sem notar se era a boneca da filha ou o presente do pai. Inclinando-se à frente, deitou. Paulatinamente, foi virando-se de lado, em posição uterina, abraçou asfixiadamente a bonequinha. Queria permanecer ali até que o silêncio fosse o único som da casa. Não derramou uma lágrima. O feijão, ao berros, iria queimar. Com o peso e a força do corpo a boneca acionaria o seu falso choro de criança.

Comentários

Postar um comentário

Postagens mais visitadas