Conto de domingo


Das últimas vezes em que se olhou no espelho teve a impressão de que os olhos estavam diminuindo. Tanta era a impressão que, em uma dessas vezes, foi até o banheiro, acendeu a luz e examinou o rosto atentamente. Passou os dedos sobre a pele, logo abaixo dos cílios inferiores, exatamente sobre as olheiras. Questionou os olhos inexpressivos, estes responderam-lhe fechando suas pálpebras.

Deixou que os ombros caíssem um pouco, o suficiente para perceber o corpo tísico. A barba não passou de uma sombra faiscada em caneta de tinta preta, ledo engano, não era noite de São João. Nem ao menos era noite. E os olhos, ah, os mesmos olhos, outros não haveria de ter, tentaram dizer algo. O detalhe, porém, era que a boca não os tinha em grande estima, muito menos apreendia a visão dentro do seu conforto de linguagem, seu contrato era apenas com os ouvidos. E essa mesma boca, bem delineada, abriu, em seguida, fechou. Contudo, não desistiu. Tentou corresponder novamente ao olhar que tateava o reflexo especular. Ovalou-se, logo absteve-se. Resolveu, em derradeira tentativa, regurgitar palavras mudas, alterou timbres somente em texturas, desvairou-se em berros surdos. Por fim, conseguiu apenas distorcer a face cansada e ensurdecer os olhos com sua flexível falta de sentido.

Quiçá pela trivialidade da imagem, ao passar de alguns minutos, esqueceu-se da hipótese dos olhos em encolhimento, ou melhor, lavou-a junto com o rosto em água fria. E esse rosto era um só, mas separado em duas porções segregadas por um segmento horizontal perpendicular ao corpo levemente curvado sobre a pia. A linha cortava exatamente a região central do crânio. Uma das partes, a superior, não conseguia dizer o que sentia; a inferior, por sua vez, não se permitia sentir o que dizia.


Narciso - Caravaggio



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